quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Capitulo 8

Postado por Estante de Livros às quarta-feira, dezembro 04, 2013 0 comentários
(OITO)
O problema é que, quando você passa a vida inteira na cidade de Chicago e arredores,
não consegue apreender completamente certas facetas da vida rural. Tomemos, por
exemplo, o caso perturbador do galo. Na cabeça de Colin, o galo cantando de manhãzinha
não passava de um clichê literário e cinematográfico. Sempre que um autor queria que um
personagem fosse despertado ao alvorecer, Colin achava que ele simplesmente recorria à
tradição literária do galo cantando para fazer aquilo acontecer. Era algo, ele pensava, que os
escritores sempre faziam: escrever as coisas de um jeito diferente do que são na verdade. Os
escritores nunca contavam a história toda; simplesmente iam direto ao ponto. Para Colin, a
verdade deveria importar tanto quanto o ponto, e ele imaginou que devia ser por isso que
não conseguia contar histórias direito.
Naquela manhã ele aprendeu que, no fim das contas, os galos não começam a cantar à
primeira luz do dia. Começam bem antes, lá pelas cinco horas. Colin rolou na cama com a
qual não estava acostumado e por uns poucos e lentos segundos, enquanto tentava enxergar
na escuridão, ele se sentiu bem. Cansado e irritado com o galo. Mas bem. Mas aí se lembrou
de que ela havia terminado com ele, e pensou nela, adormecida em sua cama enorme e
macia, não sonhando com ele. Colin rolou de novo e deu uma olhada no celular. Nenhuma
ligação não atendida.
O galo cantou de novo.
— Co-co-ri-có-não, motherfugger — Colin murmurou.
Mas o galo continuou com o co-co-ri-có-sim e, depois que o sol nasceu, o canto criou um
tipo de sinfonia dissonante, esquisito quando misturado aos sons abafados da reza matinal
de um muçulmano. Aquelas horas de ruídos que não o deixavam dormir lhe deram bastante
tempo para se questionar sobre tudo, de quando a Katherine pensou nele pela última vez
até a quantidade de anagramas gramaticalmente corretos para galo cantando.38
Por volta das sete da manhã, quando o galo (ou, quem sabe, houvesse mais de um, talvez
eles cantassem em turnos) entrou em sua terceira hora de gritos estridentes, Colin foi
cambaleando até o banheiro, que também tinha ligação com o quarto de Hassan. O amigo
já estava no banho. Mesmo sendo tudo muito luxuoso, não havia banheira.
— Bom dia, Hass.
— Oi! — Hassan gritou por causa do barulho da água. — Cara, a Hollis está dormindo na
sala de estar com a televisão ligada no canal de compras. Ela tem uma casa de 1 bilhão de
dólares e dorme no sofá.
— Efas fefoas são estranhas — Colin disse, tirando a escova de dentes da boca no meio da
frase.
— Não importa. A Hollis me adora. Ela acha que eu sou o máximo. E que você é um
gênio. E a 500 dólares por semana eu nunca mais vou precisar trabalhar na vida.
Quinhentos dólares dão para cinco meses na minha casa, cara. Eu posso viver com o
dinheiro desse verão até, tipo, os 30 anos.
— Sua falta de ambição é verdadeiramente admirável.
Hassan estendeu o braço para fora do box e pegou uma toalha bordada com o
monograma HLW. Ele surgiu alguns instantes depois e andou até o quarto de Colin, a
toalha enrolada na cintura de diâmetro considerável.
— Olha aqui, kafir. Falando sério. Larga do meu pé com essa história de eu ir para a
faculdade. Você me deixa ser feliz; eu deixo você ser feliz. Ficar enchendo a merda do saco
um do outro faz parte, mas tem limite.
— Foi mal. Eu não sabia que tinha chegado ao limite.
Colin se sentou na cama. Estava vestido com a camisa de malha do KranialKidz.
— Pois é. Você tocou nesse assunto, tipo, uns 284 dias consecutivos.
— Talvez a gente devesse escolher uma palavra — Colin disse. — Para quando já tiver ido
longe demais. Tipo, uma palavra aleatória, e aí vamos saber que é para parar de encher o
saco.
Parado ali, em pé, enrolado na toalha, Hassan olhou para o teto e, por fim, disse:
— Badalhoca.
— Badalhoca — Colin concordou, tentando formar anagramas para ela na cabeça, e só
gostou de dez.39
— Você está fazendo anagramas, não está, motherfugger? — perguntou Hassan.
— Estou — Colin disse.
— Deve ter sido por isso que ela terminou com você. Sempre criando anagramas, nunca
escutando.
— Badalhoca — disse Colin.
— Só quis dar a chance de você usar nosso código. Tá, vamos comer. Estou mais faminto
que uma criança no terceiro dia do acampamento para gordos.
Enquanto eles percorriam um corredor que terminava numa escada em espiral a caminho
da sala de estar, Colin perguntou, o mais próximo que conseguiu chegar de um sussurro:
— Por que você acha que a Hollis quer nos dar um emprego, de verdade?
Hassan parou no meio da escada e Colin também.
— Ela quer me fazer feliz. Nós, gordinhos, temos um laço afetivo, cara. Somos tipo uma
Sociedade Secreta. Temos vários lances que nem passam pela cabeça de vocês. Apertos de
mão, danças especiais para gordos, umas cavernas fugging secretas no centro da Terra para
onde descemos no meio da noite, quando todos os magros estão dormindo, para comer
bolo, frango assado e altas paradas. Por que acha que a Hollis ainda está dormindo, kafir?
Porque ficamos acordados a noite toda na caverna secreta injetando cobertura de bolo na
veia. Ela está nos dando emprego porque um gordinho sempre confia em outro gordinho.
— Você não é gordo. É rechonchudo.
— Cara, você acabou de ver meus peitinhos quando saí do banho.
— Eles não são tão grandes assim — disse Colin.
— Ah, então é assim? Foi você quem pediu!
Hassan levantou a camisa até o pescoço e Colin deu uma olhada no tórax cabeludo, que
tinha — tá, não há como negar — pequenos peitos. Tamanho PP de sutiã, mas mesmo assim.
Com um largo sorriso de satisfação, Hassan baixou a camisa e seguiu escada abaixo.
• • •
Demorou uma hora para Hollis se arrumar, período no qual Hassan e Lindsey jogaram
conversa fora e assistiram ao Today Show, enquanto Colin ficou sentado no canto mais
distante do sofá lendo um dos livros que enfiara na mochila — uma antologia de Lord
Byron que continha os poemas Lara e Don Juan, dos quais Colin gostava muito. Quando
Lindsey o interrompeu, ele havia acabado de chegar a um verso que adorava em Lara: “A
eternidade ordena a ti que esqueça.”
— Que é que cê tá lendo aí, sabichão? — perguntou Lindsey.
Colin levantou o livro para mostrar a capa.
— Don Juan — ela disse, pronunciando Juan rapidinho, tipo Jwan, como se fosse um
monossílabo. — Tentando aprender como não levar o fora das namoradas?
— Ju-an — Colin corrigiu. — São duas sílabas: Don Ju-an — ele disse.40
— Isso não é interessante — Hassan observou.
Mas Lindsey pareceu achar aquilo mais irritante que desinteressante. Ela revirou os olhos
e começou a tirar a mesa do café da manhã. Hollis Wells desceu a escada envolta no que
parecia, juro por Deus, uma toga florida.
— O que a gente tá fazendo — falou rapidamente —, a gente tá registrando a história oral
de Gutshot, pras gerações do futuro. Eu vinha chamando o pessoal da linha de produção
pra entrevista nas últimas duas semanas, mas não tenho mais que fazer isso agora que cês
estão aqui. Bem, o problema de toda essa operação até aqui tem sido a fofoca… todo
mundo falando sobre o que os outros dizem ou não dizem. Mas cês não têm nenhum
motivo nesse mundo pra opinar se Ellie Mae gostava ou não do marido quando casou com
ele em 1937. Então, vão cês dois. E Linds, porque todo mundo confia…
— Eu sou muito sincera — Lindsey explicou, interrompendo a mãe.
— Até demais, querida. Mas, é. Então, cê bota esse pessoal pra falar e eles num param
mais. Verdade verdadeira. Eu quero seis horas de gravação nova na minha mão todo santo
dia. Mas façam de um tudo pra eles falarem da verdadeira história, se cês conseguirem. Tô
fazendo isso pros meus netos, não pra um festival de fofoca.
Lindsey tossiu, murmurou “babaquice”, e então tossiu de novo.
Hollis arregalou os olhos.
— Lindsey Lee Wells, bote agorinha mesmo uma moeda de 25 centavos no pote do
palavrão!
— Merda — Lindsey disse. — Caralho. Porra. — Ela foi lentamente até a moldura da lareira
e colocou uma nota de 1 dólar num pote de vidro com tampa. — Tô sem moeda, Hollis —
ela disse.
Colin não conseguiu conter o riso; Hollis lançou um olhar ferino para ele.
— Bom — ela disse —, cês devem ir agora. Seis horas de fita, e voltem pro jantar.
— Peraí, quem vai abrir a loja? — perguntou Lindsey.
— Vou pôr o Colin lá um tempo.
— Eu vou sair para entrevistar pessoas desconhecidas — Colin argumentou.
— O outro Colin — Hollis disse. — O — e aí ela suspirou — namorado da Lindsey. Ele tem
matado o trabalho metade do tempo, de qualquer jeito. Agora, fora daqui.
• • •
No Rabecão, com Hassan ao volante descendo a excessivamente comprida entrada de
veículos da Mansão Cor-de-rosa, Lindsey disse:
— O, suspiro, namorado da Lindsey. É sempre o, suspiro, namorado da Lindsey. Jesus
Cristo. Tá, escute aqui, é só me deixar lá na loja.
Hassan olhou para cima e falou com Lindsey pelo espelho retrovisor.
— De jeito fugging nenhum. É assim que começam os filmes de terror. Nós deixamos você
lá, entramos na casa de algum desconhecido e cinco minutos depois tem um psicopata
fatiando os meus ovos com um facão enquanto a esposa esquizofrênica dele obriga o Colin
a fazer flexões de braço numa cama de carvão em brasa. Você vai com a gente.
— Não quero ofender cês dois não, mas não vejo o Colin desde ontem.
— Não quero ofender aquele fugger, não — Hassan retrucou —, mas o Colin está sentado
aqui no banco da frente lendo Don JU-AN. Você namora O Outro Colin, vulgo OOC.
Colin já não estava mais lendo — prestava atenção em Hassan agindo em sua defesa. Ou,
pelo menos, achava que ele o estava defendendo. Não dava nunca para saber ao certo,
quando se tratava de Hassan.
— Quer dizer, meu garoto aqui é claramente o Colin Original. Não há outro igual a ele.
Colin, diga “único” na maior quantidade de línguas que conseguir.
Colin foi rápido. Era uma palavra que ele conhecia.
— Humm, único,41 unico,42 einzigartig,43 unique,44 уникальный,45 μοναδικός,46 singularis,47
farid.48
Hassan era bom naquilo, sem a menor dúvida — Colin sentiu uma onda de afeição por
ele, e a recitação das palavras fez com que algo preenchesse o buraco onipresente.
Funcionou, ainda que só por um instante, como remédio.
Lindsey sorriu para Colin pelo espelho retrovisor.
— Senhor, meu cálice de Colins transborda. Um pra me ensinar línguas, outro pra me
beijar de língua. — Ela riu da própria piada, e falou: — Tá, tudo bem. Eu vou. Não quero ver
o Colin tendo seus ovos fatiados, no fim das contas. Nenhum dos Colins, na verdade. Mas
cês têm de me levar até a loja depois.
Hassan concordou e então Lindsey os guiou até uma ruela cheia de casas pequenas de
apenas um andar, depois de passarem em frente ao que ela chamou de “Taco Hell”. Eles
estacionaram na entrada de veículos.
— A maioria do pessoal tá no trabalho — ela explicou. — Mas Starnes deve tá em casa.
O homem os recebeu à porta. A mandíbula inferior de Starnes parecia não existir; ele
parecia ter um tipo de bico de pato coberto de pele, em vez de queixo ou mandíbula ou
dentes. E, mesmo assim, ainda tentou sorrir para Lindsey.
— Docinho — ele disse —, como cê tá?
— Fico sempre bem quando vejo ocê, Starnes — ela devolveu, dando um abraço no
homem.
Os olhos dele brilharam e, em seguida, Lindsey o apresentou a Colin e a Hassan. Quando
o velho reparou que Colin olhava fixamente para ele, explicou:
— Câncer. Agora, cês todos entrem e sentem.
A casa cheirava a sofás mofados e velhos, e a madeira rústica. Cheirava, Colin pensou, a
teias de aranha ou a lembranças nebulosas. Tinha o mesmo cheiro do porão da K-19. E
aquele odor fez com que ele voltasse no tempo tão visceralmente, para uma época em que
ela o amava — ou pelo menos ele achava isso —, que sua barriga começou a doer de novo.
Ele fechou bem os olhos por um segundo e esperou a sensação passar, mas não passou.
Para Colin, nada nunca passava.
O Começo (do Fim)
Katherine XIX ainda não era exatamente a XIX quando eles saíram juntos, sozinhos, pela
terceira vez. Embora os sinais parecessem favoráveis, ele não poderia simplesmente
perguntar a ela se queria namorá-lo, e certamente não poderia simplesmente aproximar seu
rosto do dela e beijá-la. Com frequência Colin vacilava quando se tratava da hora do beijo.
Ele tinha uma teoria a esse respeito, na verdade, intitulada Teoria da Minimização da
Rejeição (TMR):
O ato de aproximar o rosto para beijar alguém, ou de perguntar se pode beijar alguém,
carrega o risco da possibilidade de rejeição; assim, a pessoa menos propensa a ser rejeitada
deveria fazer a aproximação do rosto ou a pergunta. E essa pessoa, pelo menos em
relacionamentos heterossexuais no ensino médio, definitivamente é a garota. Pense bem:
garotos, basicamente, querem beijar garotas. Os meninos querem beijar, abraçar, apalpar.
Sempre. Tirando Hassan, raramente acontece de um garoto pensar algo como: “Humm,
acho que prefiro não beijar hoje.” Talvez, se um cara estiver pegando fogo, literalmente, não
vá pensar em dar uns pegas. Mas só nesse caso. Ao passo que as garotas são bastante
inconstantes quando se trata desse negócio de beijo. Às vezes elas querem dar uns pegas; às
vezes, não. Elas são uma fortaleza impenetrável de incognoscibilidade, na verdade.
Logo: as garotas deveriam sempre tomar a iniciativa, porque (a) elas são, em geral, menos
propensas a serem rejeitadas que os garotos e (b) dessa forma elas nunca serão beijadas, a
menos que queiram.
Infelizmente para Colin, não há nada lógico no negócio do beijo e, por causa disso, sua
teoria nunca funcionou. Mas, por ele sempre ter esperado um tempo tão
inacreditavelmente grande para beijar uma garota, raramente teve de lidar com a rejeição.
Ele ligou para a futura Katherine XIX naquela sexta-feira depois da aula e convidou-a para
sair e tomar um café no dia seguinte, e ela aceitou. Foi a mesma cafeteria dos dois
primeiros encontros — ocasiões perfeitamente agradáveis e cheias de tanta tensão sexual
que ele não pôde evitar ficar um pouco excitado só com o toque fortuito da mão dela na
sua. Ele colocou as mãos em cima da mesa, na verdade, porque queria que estivessem ao
alcance dela.
A cafeteria ficava a alguns quilômetros da casa da Katherine e a quatro prédios da de
Colin. Chamava-se Café Sel Marie e servia um dos melhores cafés de Chicago, o que não
fazia muita diferença para Colin, porque Colin não gostava de café. Ele gostava muito da
ideia do café — uma bebida quente que fornecia energia e tinha sido associada, durante
vários séculos, a pessoas sofisticadas e a intelectuais. Mas, para ele, o gosto do café em si
parecia bílis cafeinada. Então Colin amenizou aquele sabor desagradável afogando seu café
em leite, o que fez Katherine delicadamente mexer com ele naquela tarde. Seria
desnecessário dizer que Katherine bebeu café puro. As Katherines, geralmente, tomam café
assim. Elas gostam do café da mesma forma que gostam de seus ex-namorados: amargos.
Algumas horas e quatro xícaras depois, ela quis que Colin visse um filme.
— O título é Os Excêntricos Tenenbaums — falou. — É sobre uma família de prodígios.
Colin e Katherine pegaram a linha castanha do metrô sentido sudeste, na direção de
Wrigleyville, e depois andaram cinco quarteirões até a casa dela, uma construção estreita de
dois andares. Katherine levou-o até o porão. Com piso de linóleo num padrão em ondas, o
cômodo abafado e úmido continha um sofá antigo, não possuía janelas e o teto era bem
baixo (o pé-direito tinha 1,90m, e Colin, 1,85m). Não era um lugar muito propício para se
viver, mas como cinema era fantástico. Tão escuro que você podia afundar no sofá e entrar
pela tela da TV.
Colin bem que gostou do filme; pelo menos riu à beça e encontrou consolo num mundo
em que todos os personagens que tinham sido crianças superdotadas cresceram e se
tornaram adultos verdadeiramente fascinantes e únicos (mesmo sendo todos meio doidos).
Quando o filme terminou, Katherine e Colin ficaram sentados no escuro. O porão era o
único lugar genuinamente escuro que Colin já vira em Chicago — de dia e de noite, uma luz
laranja-acinzentada se infiltrava por qualquer lugar com janelas.
— Eu adoro a trilha sonora — disse Katherine. — É tão maneira!
— É — Colin disse. — E eu gostei dos personagens. Até daquele pai terrível eu gostei um
pouquinho.
— É, eu também.
Ele conseguia ver o cabelo loiro dela e o contorno de seu rosto, mas quase nada mais. A
mão dele, que tinha ficado segurando a dela desde que haviam se passado uns trinta
minutos de filme, estava com cãibra e suada, mas ele não quis ser o primeiro a soltar a mão.
Ela continuou:
— Quer dizer, ele é egoísta, mas todo mundo é egoísta.
— É — Colin disse.
— Então é assim? É assim que é ser um, humm, prodígio ou sei lá o quê?
— Humm, não exatamente. Por exemplo, todos os prodígios no filme eram lindos — ele
brincou.
Ela riu e disse:
— Assim como todos os que eu conheço.
Ele expirou audivelmente, olhou para ela e quase… mas não. Não tinha certeza, e não
conseguia nem pensar na possibilidade de ser rejeitado.
— Mesmo assim, nesse filme parece que todos já nasceram talentosos. Eu não sou assim,
sabe? Quer dizer, eu trabalho pelo menos dez horas por dia, todos os dias, desde que tinha
3 anos — disse, sem falsa modéstia.
Ele pensava mesmo naquilo como um trabalho. As leituras e a prática de idiomas e da
pronúncia, a recitação dos fatos, a análise cuidadosa de todos os textos postos à sua frente.
— Então, no fim das contas, em que você é bom exatamente? Quer dizer, eu sei que você é
bom em tudo, mas no que você é muito bom além de em outras línguas?
— Sou bom em códigos e coisas assim. E sou bom em, tipo, truques linguísticos, como
anagramas. Para falar a verdade, isso é o que eu mais gosto de fazer. Posso criar anagramas
para qualquer coisa.
Ele ainda não havia falado para nenhuma das Katherines sobre seus anagramas. Sempre
imaginou que isso fosse entediá-las.
— Qualquer coisa?
— Que caqui solar — ele respondeu de bate-pronto.
Ela riu e disse:
— Katherine Carter.
Ele queria tanto colocar a mão na nuca da Katherine, puxá-la para perto e provar o gosto
da sua boca, macia e carnuda, na escuridão... Mas ainda não. Não tinha certeza. Seu coração
saltava no peito.
— Humm, tá. A ti reencher, kart… humm, ah. Gosto desse aqui: Ir te rechear, Kant.
Ela riu, largou a mão de Colin e colocou a dela espalmada no joelho dele. Seus dedos
eram macios. De repente, Colin sentiu o perfume dela sobressaindo ao odor do porão
úmido. Cheirava a lilases, e foi aí que ele soube que estava quase na hora. Mas não ousou
encará-la. Ainda não. Só ficou olhando para a tela escura da TV. Queria prolongar o
momento antes da hora H — porque, por melhor que seja a sensação do beijo, nada é
melhor que a expectativa do beijo.
— Como é que você faz isso? — ela perguntou.
— É questão de prática, basicamente. Venho praticando há muito tempo. Eu pego as
letras e primeiro formo uma palavra legal, como kart ou Kant, e depois tento usar as letras
que sobram para fazer… ai, cara, isso é chato — ele disse, torcendo para que não fosse.
— Não é, não.
— Eu só tento achar uma combinação que seja gramaticalmente correta com as letras que
sobram. Mas, de qualquer forma, é só um macete.
— Tá, então há os anagramas. Esse é um deles. Você possui algum outro talento
fascinante? — ela perguntou, e naquele momento ele ficou confiante.
Finalmente, Colin virou-se, reunindo o pouco de coragem disponível em seu âmago, e
disse:
— Bom, eu beijo relativamente bem.
38 Ele achou vinte, dos quais só gostou mesmo de dois: “o tal candonga” e “canal do tango”.
39 Bolachada; chá da bola; cada bolha; alba do chá; acha baldo; o chá balda; da bolacha; bala do chá; dá cá bolha; chá da loba.
40 É verdade. A maior parte da métrica nos versos originais do Don Juan de Byron só funciona se você enfatizar bem a
pronúncia das duas sílabas de Juan.
41 Português e espanhol.
42 Italiano.
43 Alemão.
44 Inglês e francês.
45 Russo.
46 Grego.
47 Latim.
48 Árabe.
pg 82

Capitulo 7

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(SETE)
De repente, do nada, logo depois de uma pequena encosta, o capinzal desembocou num
cemitério. Continha mais ou menos quarenta túmulos e era rodeado por uma mureta de
pedra que batia no joelho, coberta de musgo e escorregadia.
— E aqui tá o último e derradeiro local de descanso do arquiduque Francisco Ferdinando
— disse Lindsey Lee Wells, a voz repentinamente afetada por uma nova cadência: a da guia
turística entediada que há tempos decorou sua fala.
Colin e Hassan a seguiram até um obelisco de quase dois metros — parecia o
Monumento a Washington, só que em miniatura —, diante do qual havia uma abundância
de rosas de seda já meio antigas, todas cor-de-rosa. Embora obviamente não fossem de
verdade, as flores, ainda assim, pareciam murchas.
Lindsey se sentou na mureta com musgo.
— Ah, pros diabos com o texto decorado. Cê já deve saber tudo isso mesmo — ela disse,
balançando a cabeça na direção de Colin. — Mas vou contar a história: o arquiduque nasceu
em dezembro de 1863, na Áustria. O imperador Francisco José era tio dele, mas ser
sobrinho de um imperador austro-húngaro não queria dizer muita coisa. A menos que,
digamos, o filho único do imperador, Rodolfo, acabasse dando um tiro na própria cabeça, o
que, na verdade, aconteceu, em 1889. De uma hora pra outra, Francisco Ferdinando passou
a ser o próximo na linha de sucessão ao trono.
— As pessoas diziam que Francisco Ferdinando era o homem mais solitário de Viena —
Colin falou para Hassan.
— É, ninguém gostava dele porque era um tremendo nerd — disse Lindsey —, só que ele
era um daqueles nerds que não são nem muito inteligentes. Era do tipo fraquinho de
nascença e pesava só 45 quilos. A família achava que ele era um covarde liberal; a sociedade
vienense achava que era um abobado, mesmo, daqueles que ficam com a língua pendurada
na boca. E aí, então, pra piorar as coisas, ele se casou por amor, com uma garota chamada
Sofia, em 1900, que todo mundo considerava uma desclassificada. Mas, cê sabe, em defesa
do cara, ele realmente amava a moça. Eu nunca digo isso no tour, mas, de tudo o que li
sobre o Chico, a Sofia e ele tiveram o casamento mais feliz de toda a história da realeza. A
história deles é fofa, tirando que, no 14o aniversário de casamento, em 28 de junho de 1914,
os dois foram assassinados a tiros em Sarajevo. O imperador mandou que fossem
sepultados fora de Viena. E nem se deu o trabalho de ir ao enterro. Mas se importou o
bastante pra seguir em frente e começar a Primeira Guerra Mundial, o que fez quando
declarou guerra à Sérvia um mês depois. — Ela se levantou. — E assim termina o tour. — E
abriu um sorriso. — Gorjetas são bem-vindas.
Colin e Hassan bateram palmas educadamente e Colin andou até o obelisco, em que se
lia apenas: ARQUIDUQUE FRANCISCO FERDINANDO. 1863-1914. COBRE-O
SUAVEMENTE, Ó, TERRA, EMBORA / ESTE TENHA LANÇADO UM PESADO FARDO
SOBRE TI. Fardos pesados, sem dúvida — milhões deles. Colin estendeu a mão e apoiou-a
no granito, frio apesar do sol quente. E o que foi que o arquiduque Francisco Ferdinando
fez que poderia ter sido feito diferente? Se ele não tivesse ficado tão obcecado por causa de
um amor, se não tivesse sido tão sem tato, tão chorão, tão nerd — talvez se não tivesse sido,
pensou Colin, tão como eu…
No fim das contas, o arquiduque enfrentou dois problemas: ninguém dava a menor bola
para ele (pelo menos, não até seu cadáver deflagrar uma guerra) e um dia um pedaço dele
foi arrancado.
Mas Colin agora preencheria o próprio buraco e faria as pessoas se levantarem e
prestarem atenção nele. Continuaria sendo especial e usaria seu talento para fazer algo mais
interessante e importante do que criar anagramas e traduzir do latim. E, sim, novamente o
momento eureca o invadiu, o é-isso-é-isso-é-isso dele. Colin usaria seu passado — além do
passado do arquiduque e todo o passado infinito — para informar o futuro. Colin
impressionaria Katherine XIX — ela sempre adorara a ideia de ele ser um gênio — e tornaria
o mundo mais seguro para Terminados em toda parte. Ele seria importante.
E foi despertado desse devaneio por Hassan perguntando:
— E então como é que um fug arquiduque austríaco de verdade acabou em Merdasburgo,
Tennessee?
— A gente comprou o cadáver dele — disse Lindsey Lee Wells. — Foi por volta de 1921. O
dono do castelo onde ele tava enterrado precisava de dinheiro e colocou o corpo à venda. A
gente comprou.
— Quanto custava um arquiduque morto naquela época? — indagou Hassan.
— Uns 3.500 dólares, pelo que dizem.
— É um bom dinheiro — disse Colin, a mão ainda apoiada no obelisco de granito. —
Agora o dólar vale dez vezes mais que em 1920, o que dá um total de 35 mil nos dias de
hoje. Um monte de visitas guiadas a 11 dólares cada.
Lindsey Lee Wells revirou os olhos.
— Tá, tá. Já tô bastante impressionada. Agora chega. Sabe, a gente tem uma coisa por aqui,
não sei se cês têm isso lá de onde cês vêm, mas se chama calculadora, e ela faz todo esse
trabalho pra gente.
— Eu não estava tentando impressionar ninguém — Colin insistiu, na defensiva.
Nessa hora os olhos de Lindsey se arregalaram, ela colocou as mãos em concha em volta
da boca e gritou.
— Ei!
Três caras e uma garota vinham subindo a encosta lentamente, só dava para ver as
cabeças.
— O povo da escola — explicou Lindsey. — E meu namorado.
Lindsey Lee Wells saiu correndo na direção deles. Hassan e Colin permaneceram imóveis
e começaram um diálogo acelerado.
Hassan:
— Eu sou um aluno de intercâmbio kuwaitiano; meu pai é um barão do petróleo.
Colin fez que não com a cabeça.
— Óbvio demais. Eu sou espanhol. Refugiado. Meus pais foram assassinados por
separatistas bascos.
— Eu não sei se basco é uma coisa ou uma pessoa, e eles também não vão saber, então:
não. Tá, eu acabei de chegar aos Estados Unidos vindo de Honduras. Meu nome é Miguel.
Meus pais ficaram ricos com plantações de bananas e você é meu guarda-costas porque o
sindicato dos trabalhadores dos bananais me quer morto.
Colin retrucou de bate-pronto.
— Essa é uma boa ideia, mas você não fala espanhol. Tá, eu fui sequestrado por esquimós
no território Yukon… não, essa não cola. Nós somos primos franceses em visita aos Estados
Unidos pela primeira vez na vida. Essa é nossa viagem de formatura do ensino médio.
— Isso é meio sem graça, mas estamos sem tempo. Só eu falo inglês? — Hassan
perguntou.
— Tá. Pode ser.
Àquela altura Colin já conseguia ouvir o grupo conversando e ver os olhos de Lindsey Lee
Wells grudados num garoto alto e musculoso com uma camisa do time de futebol
americano Tennessee Titans. O cara era uma massa compacta de músculos, com cabelo
espetado e um sorriso que mostrava os dentes superiores e a gengiva. O sucesso da
brincadeira dependia de Lindsey não ter falado nada sobre Colin e Hassan, mas Colin
presumiu que isso não seria problema, já que ela parecia hipnotizada pelo garoto.
— Tá, eles estão vindo — disse Hassan. — Qual é o seu nome?
— Pierre.
— Tá. O meu é Salinger e a pronúncia é SalANGÊ.
— Cês tão aqui pra visita guiada, num tão? — o namorado da Lindsey disse.
— Estamos. Meu nome é Salangê — Hassan disse, a pronúncia passável, quiçá magnífica.
— Este é meu primo Pierre. Estamos visitando seu país pela primeira vez e queremos ver o
arquiduque que deflagrou nossa… como vocês dizem… Primeira Guerra da Terra.
Colin deu uma olhada em Lindsey Lee Wells, que tentou não rir enquanto estourava uma
bola do chiclete de laranja.
— Meu nome é Colin — disse o namorado, a mão estendida.
Hassan se inclinou na direção de Pierre/Colin e cochichou:
— O nome dele é “O Outro Colin”. — Continuando: — Meu primo não fala sua língua
muito bem. Eu sou o tradutor dele.
O Outro Colin riu, assim como os outros dois garotos, que rapidamente se apresentaram:
Chase e Fulton.
— Vamos chamar Chase de Jeans Apertados Demais e Fulton de Baixinho Mascando
Tabaco — Hassan cochichou novamente.
— Je m’appelle Pierre — Colin falou assim que os garotos terminaram de dizer seus nomes.
— Quand je vais dans le métro, je fais aussi de la musique de prouts.23
— A gente recebe muito turista estrangeiro por aqui — disse a única menina além de
Lindsey, uma garota alta de camiseta justa, totalmente Abercrombiezada. A menina
também tinha… como dizer isso de um jeito educado… dois air bags gigantescos. Era
incrivelmente gata, com aquele jeito de garota-popular-de-dentes-clareados-e-com-anorexia,
que era o jeito de ser gata menos preferido de Colin. — Ah, meu nome é Katrina.
Ufa, essa passou perto, pensou Colin.
— Amour aime aimer amour!24 — Colin anunciou bem alto.
— Pierre — disse Hassan. — Ele tem uma doença da fala. A, humm, com as palavras feias.
Na França nós chamamos de Toorettes. Não sei como vocês chamam aqui.
— Ele tem aquela síndrome de Tourette? — perguntou Katrina.
— MERDE!25 — gritou Colin.
— Isso — disse Hassan animado. — A mesma palavra nas duas línguas, como hemorroida.
Isso nós aprendemos ontem porque Pierre estava com o traseiro ardendo. Ele tem Toorettes.
E hemorroida. Mas é um bom menino.
— Ne dis pas que j’ai des hémorroïdes! Je n’ai pas d’hémorroïde26 — Colin gritou, querendo, ao
mesmo tempo, continuar com a brincadeira e fazer Hassan mudar de assunto.
Hassan olhou-o e balançou a cabeça mostrando que havia entendido, mas então falou
para Katrina:
— Ele acabou de dizer que seu rosto é lindo como a hemorroida.
Com isso Lindsey Lee Wells caiu na gargalhada e falou:
— Tá. Tá. Já chega.
Colin virou-se para Hassan e reclamou:
— Por que tinha de ser hemorroida? De onde raios você tirou essa ideia?
Aí O Outro Colin (OOC), o Jeans Apertados Demais (JAD), o Baixinho Mascando Tabaco
(BMT) e a Katrina ficaram todos animados, conversando, rindo e fazendo perguntas a
Lindsey.
— Meu pai foi à França ano passado, cara — explicou Hassan —, e contou a história de
quando teve crise de hemorroida e precisou apontar para a bunda e dizer “fogo” em francês
várias vezes até descobrirem que a palavra “hemorroida” era igual nas duas línguas. E eu
não conhecia mais nenhuma fugging de palavra em francês. Além disso, é muito hilário você
ter síndrome de Tourette e hemorroida.
— Ah, tanto faz — disse Colin, o rosto vermelho.
E escutou quando OOC disse:
— Isso é engraçado demais da conta. Hollis ia adorar os dois, né?
Lindsey riu, ficou na ponta dos pés para beijá-lo e disse:
— Peguei ocê direitinho, neném.
E ele retrucou:
— Nada disso, foram eles que me pegaram.
Lindsey fez biquinho, de brincadeira, OOC se inclinou para beijar sua testa e o rosto dela
se iluminou. Essa mesma cena havia ocorrido com frequência na vida de Colin — embora,
em geral, fosse ele quem fazia o biquinho.
Na volta eles atravessaram o campo em grupo, a camisa de malha de Colin empapada de
suor, grudenta e colada nas costas, o olho ainda latejando. O Teorema Fundamental da
Previsibilidade das Katherines, pensou. Até o nome soava perfeito. Ele havia esperado tanto por
sua descoberta, tantas vezes se desesperado, que só queria ficar sozinho por alguns
instantes com um lápis, algumas folhas de papel, uma calculadora e o silêncio. Dentro do
carro seria uma boa. Colin deu uma puxadinha na camisa de Hassan e lançou um olhar
expressivo para o amigo.
— Só preciso tomar um Gatorade — Hassan comentou. — Depois nós vamos.
— Vou ter que abrir a loja procês, então — Lindsey disse. Ela virou-se para OOC. — Vem
comigo, neném.
A suavidade melosa da voz dela fez Colin se lembrar de K-19.
— Eu até que queria ir — disse OOC —, só que a Hollis tá sentada ali fora na escada. Eu e
Chase devia tá no trabalho, mas a gente faltou.
OOC ergueu Lindsey do chão e lhe deu um abraço apertado, os bíceps dele se
enrijecendo. Ela se contorceu um pouquinho mas o beijou de um jeito ardente, de boca
aberta. Em seguida OOC a soltou, piscou para ela e bateu em retirada com seu séquito em
direção a uma picape vermelha.
Quando Lindsey, Hassan e Colin chegaram de volta à Mercearia Gutshot, uma mulher
grandona com um vestido cor-de-rosa de estampa florida estava sentada nos degraus
falando com um homem de barba cheia e castanha. Quando se aproximaram, Colin pôde
ouvir a mulher contando uma história.
— Então o Starnes tá lá fora aparando a grama — ela ia dizendo. — Ele desliga o cortador,
olha pra frente, avalia a situação um instante e aí grita pra mim: “Hollis! O que é que tem
de errado com esse cachorro?”, e eu digo que o cachorro tá com as glândulas anais
inflamadas, que eu acabei de drenar. O Starnes rumina isso um instante e diz: “Eu acho que
cê podia ir em frente e atirar nesse cachorro e arrumar outro com essas glândulas aí
funcionando direitinho e ninguém ia notar a diferença.” E aí eu digo pra ele: “Starnes, essa
cidade não tem um homem que preste pra amar, então é melhor eu amar meu cachorro.”
O barbudo envergou de tanto rir, e foi então que a contadora de histórias olhou para
Lindsey.
— Cê tava numa visita guiada? — perguntou. Quando Lindsey fez que sim com a cabeça,
Hollis prosseguiu. — Dá pra perceber que cê nem viu a hora passar.
— Foi mal — murmurou Lindsey. Balançando a cabeça na direção dos dois, ela disse: —
Hollis, esse é o Hassan, e o Colin. Meninos, essa é a Hollis.
— Também conhecida como mãe da Lindsey — Hollis explicou.
— Credo, Hollis. Não precisa ficar se gabando — Lindsey disse.
Ela passou pela mãe, destrancou a porta da loja e todos deram um passo para dentro do
doce ambiente com ar condicionado. Quando Colin ia passando, Hollis colocou a mão no
ombro dele, virou-o e ficou olhando fixamente para seu rosto.
— Eu conheço ocê — ela disse.
— Eu não conheço você — Colin retrucou, e então acrescentou, a fim de se justificar: —
Não esqueço muitos rostos.
Hollis Wells continuou a encará-lo, mas ele tinha certeza de nunca tê-la visto.
— Ele quis dizer “literalmente” — Hassan acrescentou, espiando de trás de uma prateleira
de revistas em quadrinhos. — Vocês recebem jornais impressos por aqui?
De trás do balcão, Lindsey Lee Wells tirou um exemplar do USA Today. Hassan folheou o
primeiro caderno e, por fim, dobrou o jornal com cuidado, deixando à mostra apenas uma
foto em preto e branco, pequena, de um homem branco de óculos e cabelos espessos.
— Conhece esse cara? — Hassan perguntou.
Colin virou-se para o jornal, estreitou os olhos e ficou pensando por um instante.
— Não pessoalmente, mas o nome dele é Gil Stabel e ele é o CEO de uma empresa
chamada Fortiscom.
— Bom trabalho. Só que ele não é isso.
— É, sim — Colin disse, bastante confiante.
— Não, não é. Ele não é CEO de nada. Ele está morto.
Hassan desdobrou o jornal e Colin se inclinou para ler a legenda: CEO DA FORTISCOM
MORRE EM ACIDENTE DE AVIÃO.
— KranialKidz! — Hollis gritou, triunfante.
Colin virou-se para ela, os olhos arregalados. E suspirou. Ninguém assistia àquele
programa. O índice de audiência era 0,0. O programa só ficou no ar por uma temporada e
nem uma alma sequer entre os três milhões de moradores de Chicago jamais reconheceu
Colin. E ainda assim, ali em Gutshot, Tennessee…
— Ai, meu Deus! — Hollis gritou. — O que cê tá fazendo aqui?
Colin corou por um momento por causa da sensação de ser famoso e pensou um pouco
antes de responder.
— Eu surtei; aí nós saímos numa viagem de carro; aí nós vimos a placa do arquiduque; aí
eu cortei a testa; aí eu tive um momento eureca; aí nós conhecemos os amigos dela, e agora
nós estávamos voltando para o carro, mas não fomos embora ainda.
Hollis deu um passo à frente e examinou o curativo. Ela sorriu e levou uma das mãos até
o cabelo estilo judeu-afro dele, como se fosse sua tia e ele, uma criança de 7 anos que
acabara de fazer algo extremamente fofo.
— E cês não vão embora ainda não — ela disse —, porque eu vou preparar um jantar.
Hassan bateu palmas.
— Eu estou mesmo com fome.
— Feche a loja, Linds.
Lindsey revirou os olhos e saiu devagar de trás da caixa registradora.
— Cê vai no carro com o Colin pro caso dele se perder — Hollis disse para Lindsey. — E eu
vou levar o… como é mesmo seu nome?
— Eu não sou terrorista — Hassan disse, como resposta.
— Ai, que alívio. — Hollis sorriu.
• • •
Hollis dirigia uma picape novinha, impressionantemente rosa, e Colin a seguia no Rabecão
com Lindsey no banco da frente.
— Carro bonito — ela comentou, sarcasticamente.
Colin não disse nada. Gostava de Lindsey Lee Wells, mas em alguns momentos parecia
que ela estava tentando deixá-lo uma arara.27 Ele tinha o mesmo problema com Hassan.
— Obrigado por não dizer nada quando eu era Pierre e Hassan, Salinger.
— É, bem. Aquilo foi engraçado. Além disso, o Colin tava dando uma de metido e
precisava descer do pedestal.
— Entendi — disse Colin, que foi o que ele aprendeu a falar quando não tinha nada a
dizer.
— Então — ela disse. — Cê é um gênio.
— Sou um menino prodígio em fim de carreira — Colin disse.
— Em que mais cê é bom, além de já saber tudo?
— Humm, línguas. Jogos de palavras. Conhecimentos gerais. Nada muito útil.
Colin continuava sentindo o olhar dela.
— Línguas são úteis. Quais línguas cê fala?
— Sou bem fluente em onze. Alemão, francês, latim, grego, holandês, árabe, espanhol,
russo…
— Já deu pra ter uma ideia — ela o interrompeu. — Acho que meine Mutter denkt, daß sie gut
für mich sind28 — completou. — É por isso que a gente tá junto neste carro.
— Warum denkt sie das?29
— Tá, a gente já mostrou que sabe falar alemão. Ela fica pegando no meu pé que nem
uma doida pra eu fazer faculdade e virar, sei lá, médica ou coisa assim. Só que eu não vou.
Vou ficar aqui. Já decidi. Então acho que talvez ela queira que cê me sirva de inspiração ou
algo parecido.
— Médicos ganham mais que paramédicos em treinamento — Colin ponderou.
— Tá, mas eu não preciso de dinheiro.
Ela fez uma pausa e pôde-se ouvir um ruído vindo de baixo do carro. Por fim, ele virou o
rosto para olhá-la.
— Eu preciso da minha vida — ela explicou —, que é boa e que é aqui. Mas, de qualquer
forma, pode ser que eu vá pra faculdade comunitária em Bradford só pra calar a boca da
Hollis, mas só isso.
A estrada fez uma curva acentuada para a direita e, logo após passarem por um grupo de
árvores, uma cidade surgiu. Casas pequenas, mas bem-cuidadas, margeavam a rua. Todas
tinham varanda, pelo menos era o que parecia, e várias pessoas ficavam sentadas nelas,
mesmo naquele verão mais quente que o inferno. Na rua principal, Colin avistou um centro
comercial relativamente novo, com um posto de gasolina, um Taco Bell, um salão de beleza
e a agência dos correios de Gutshot, TN, que, vista dali da rua, parecia ser do tamanho de
um bom closet. Lindsey apontou pela janela de Colin.
— É ali que é a fábrica — ela disse, e, à meia distância, Colin avistou um complexo de
prédios baixos.
Aquilo não se parecia muito com uma fábrica. Não havia silos de aço enormes, nem
chaminés expelindo monóxido de carbono, só alguns prédios que lembravam vagamente
hangares para aviões.
— O que ela produz? — Colin perguntou.
— Empregos. Ela gera os melhores empregos dessa cidade. Foi fundada por meu bisavô
em 1917.
Colin reduziu a velocidade e foi para o acostamento, deixando um SUV que vinha em alta
velocidade ultrapassá-los enquanto ele e Lindsey olhavam a fábrica pela janela do carro.
— Tá, mas o que é produzido lá? — ele perguntou.
— Cê vai rir.
— Não vou rir.
— Promete que não vai rir — ela disse.
— Prometo.
— É uma indústria têxtil. Hoje a gente faz mais, humm, cordinhas para absorventes
internos.
Colin não riu. Em vez disso, pensou: Absorventes internos têm cordinhas? Por quê? De todos os
grandes mistérios da humanidade — Deus, a natureza, o universo etc. —, esse era o que ele
menos conhecia. Para Colin, esses absorventes eram um pouco como os ursos-pardos:
estava ciente da existência deles, mas nunca tinha visto um solto por aí, e também não fazia
muita questão.
Em vez da risada de Colin o que se seguiu foi um período de silêncio inquebrável. Ele
acompanhou a picape rosa de Hollis por uma rua secundária, de asfalto novo, que de
repente virou uma ladeira íngreme, forçando o motor fatigado do Rabecão a aumentar o
giro para conseguir subir. Conforme avançavam, ficou claro que a rua era, na verdade, uma
comprida entrada de veículos, que terminava em frente à maior residência de uma só
família na qual Colin já pusera os olhos. Além disso, era ofuscantemente, chicletemente e
Pepto-Bismolicamente cor-de-rosa. Ele foi adiante. Colin olhava fixamente para a casa, um
tanto boquiaberto, quando Lindsey cutucou de leve seu braço. Ela encolheu os ombros,
como se estivesse constrangida.
— Não é muito — falou. — Mas é o nosso lar.
Uma sequência de degraus largos abria caminho até uma varanda com muitas colunas.
Hollis destrancou a porta e Colin e Hassan entraram numa sala de estar ampla e mobiliada
com um sofá grande o suficiente para ambos deitarem nele sem nem se encostarem.
— Cês fiquem à vontade. Eu e a Lindsey, a gente vai preparar o jantar.
— Acho que cê consegue cuidar disso sozinha — Lindsey disse, recostando na porta da
casa.
— Também acho, mas num quero.
Hassan se sentou no sofá.
— Essa Hollis é uma figura, cara. Na vinda pra cá, ela me contou que é dona de uma
fábrica que produz cordinhas para absorventes.
Colin ainda não conseguia ver graça naquilo.
— Sabe — Colin disse —, a atriz de cinema Jayne Mansfield morava numa mansão cor-derosa.
Ele andou pela sala de estar, lendo a lombada dos livros da Hollis e vendo as fotos nos
porta-retratos. Uma foto apoiada na lareira atraiu o olhar de Colin e ele se aproximou. Uma
Hollis ligeiramente mais jovem e ligeiramente mais magra estava de pé em frente às
Cataratas do Niágara. Ao lado dela havia uma menina que se parecia um pouco com
Lindsey Lee Wells, só que a garota usava um sobretudo preto por cima de uma camisa de
malha velha e surrada do Blink-182. O delineador fazia uma linha grossa em volta dos
olhos e se alongava até as têmporas, a calça jeans preta era colada ao corpo e bem justa nas
pernas, as botas Doc Martens bem engraxadas.
— Ela tem uma irmã? — perguntou Colin.
— O quê?
— Lindsey — Colin complementou. — Venha ver isso aqui.
Hassan andou até ele e analisou a foto brevemente antes de dizer:
— Essa é a tentativa mais patética de parecer gótico que eu já vi. Góticos não gostam do
Blink-182. Cara, até eu sei disso.
— Humm, cês gostam de vagem? — Lindsey perguntou, e Colin de repente se deu conta de
que ela estava atrás deles.
— Essa aqui é sua irmã? — perguntou Colin.
— Ah, não — ela respondeu. — Sou filha única. Não deu pra perceber pelo meu jeito
adoravelmente egocêntrico?
— Ele estava ocupado demais sendo adoravelmente egocêntrico para notar isso — Hassan
comentou.
— Então quem é essa? — Colin perguntou para Lindsey.
— Sou eu no oitavo ano.
— Ah — fizeram Colin e Hassan ao mesmo tempo, ambos constrangidos.
— Sim, eu gosto de vagem — Hassan disse, tentando mudar de assunto o mais rápido
possível.
Lindsey foi para a cozinha e fechou a porta, e Hassan deu de ombros para Colin com um
sorrisinho afetado, voltando, então, para o sofá.
— Eu preciso trabalhar — Colin disse.
Ele seguiu sozinho por um corredor todo forrado de papel de parede cor-de-rosa e entrou
num cômodo no qual havia uma enorme escrivaninha de madeira. Parecia o tipo de lugar
em que um presidente poderia sancionar uma lei. Colin se sentou, tirou do bolso o lápis no
2 quebrado e o caderninho onipresente e começou a escrever.
O teorema se baseia na validade do meu antigo argumento de que o mundo contém, precisamente,
dois tipos de pessoas: Terminantes e Terminados. Todo mundo está predisposto a ser um ou outro,
mas, obviamente, nem todas as pessoas são Terminantes ou Terminados COMPLETOS. Daí a curva
de sino:
A maioria das pessoas fica em algum ponto perto da linha divisória vertical, com o eventual desgarrado estatístico (p.ex., eu) representando
uma pequena porcentagem do total de indivíduos. Na expressão numérica do gráfico devemos ter algo próximo do 5 representando um
Terminante extremo e 0 representando a minha pessoa. Logo, se Katherine, a Grande, era um 4 e eu sou um 0, o tamanho total da
diferencial Terminante/Terminado = –4. (Considerando números negativos se o cara estiver mais para Terminado; positivos se for a
menina.)
E então ele buscou criar uma equação que pudesse ser representada graficamente e que
fosse a expressão de seu relacionamento com Katherine, a Grande (o mais simples de todos
os seus romances), como ele foi de fato: desagradável, brutal e curto.
Por algum motivo, enquanto descartava equações a torto e a direito, o cômodo parecia
ficar cada vez mais quente. O suor minava do curativo acima de seus olhos, por isso Colin o
arrancou. Tirou a camisa, limpando o sangue escorrido e ressecado no rosto. Nu da cintura
para cima, as vértebras saltavam das costas magras conforme ele se curvava na escrivaninha,
trabalhando. Colin experimentou algo que nunca havia sentido — estava perto de um
conceito original. Muitas pessoas, ele inclusive, já haviam percebido a existência da
dicotomia Terminante/Terminado. Mas ninguém jamais havia usado isso para demonstrar
o arco dos relacionamentos românticos. Ele duvidava que alguém sequer tivesse imaginado
que uma simples fórmula pudesse prever a ascensão e a queda dos romances em caráter
universal. Ele sabia que não seria fácil. Para começar, transformar conceitos em números
era um tipo de anagramatização à qual não estava acostumado. Mas ele se sentia confiante.
Nunca fora tão bom assim em matemática,30 mas era um maldito de um especialista
mundialmente famoso em levar o fora das namoradas.
Ele perseverou na fórmula, assombrado pela sensação de que sua mente estava prestes a
alcançar algo grande e significativo. E quando Colin provasse que era importante, ela
sentiria sua falta, ele sabia. Ela o veria como no início: como um gênio.
Em uma hora ele já tinha uma equação:
f(x) = T3x2 — T
o que fez com que a Katherine I tivesse esta aparência:
Aquilo estava bem próximo da perfeição — uma representação gráfica descomplicada de
um relacionamento descomplicado, que capturava até mesmo a brevidade do
relacionamento. Gráficos não precisam representar o tempo com precisão, mas apenas dar
uma ideia dele por comparação, ou seja: ela vai me namorar mais tempo que a K-14, mas não
tanto tempo quanto a K-19.31
Com a Katherine II, porém, o resultado foi completamente errado — o gráfico só tocava o
eixo x uma vez. Obviamente, aquilo ainda não estava refinado o suficiente para ele enviar
aos Anais da matemática nem nada, mas Colin se sentiu bem o bastante para vestir de novo a
camisa. Mais feliz do que já estivera em, bem, pelo menos dois dias, Colin percorreu
apressado o corredor e adentrou como um raio no frescor da sala de estar, de onde viu por
uma porta aberta que Lindsey, Hassan e Hollis estavam sentados na sala de jantar. Ele
seguiu até lá e se sentou diante de um prato com arroz, vagem e o que pareciam ser frangos
muito pequenos.
Hassan estava rindo de alguma coisa, assim como as duas Wells. Elas já pareciam
apaixonadas por ele. As pessoas simplesmente gostam de Hassan, do mesmo jeito que
gostam de fast food e de celebridades. Aquele era um dom que Colin achava louvável.
Na hora que Colin se sentou, Hollis perguntou a Hassan:
— Cê gostaria de fazer uma oração?
— Claro. — Hassan pigarreou. — Bismillah. — E pegou o garfo.
— Só isso? — Hollis perguntou, curiosa.
— Só. Somos um povo conciso. Conciso e faminto.
O árabe pareceu fazer com que todo mundo ficasse constrangido ou algo assim, porque
ninguém mais falou nada durante alguns minutos, só Hassan, que ficava dizendo que a
codorna (eram codornas, e não frangos muito pequenos) estava excelente. E estava boa
mesmo, Colin presumiu, para quem gosta de ficar procurando, em meio a um labirinto
infindável de ossos e cartilagens, um pedaço eventual de carne. Ele caçou as partes
comestíveis com a ajuda do garfo e da faca e, por fim, localizou uma garfada inteira de
carne. Mastigou devagar, a fim de saboreá-la, mastigando, mastigando e ai. Credo. O que
diabos foi isso? Mastiga. Mastiga. Mastiga. E de novo. Fug. Isso é um osso?
— Ai — falou baixinho.
— Chumbo de caça — Lindsey disse para ele.
— Chumbo de caça?
— Chumbo de caça — Hollis confirmou.
— Essa codorna foi abatida a tiros? — Colin perguntou, cuspindo uma minúscula bolinha
de metal.
— Foi.
— E eu estou comendo as balas?
Lindsey sorriu:
— Não. Cê tá cuspindo elas.
E foi assim que Colin jantou, naquela noite, basicamente arroz e vagem.
Logo que todos terminaram, Hollis perguntou:
— Então, como foi vencer o KranialKidz? Eu lembro que no programa cê não pareceu
assim, humm, muito animado.
— Eu me senti muito mal pela garota que perdeu. Ela era bem legal, a menina com quem
disputei a final. E reagiu muito mal à derrota.
— Eu fiquei feliz o suficiente por nós dois — disse Hassan. — Fui o único integrante da
plateia que fez a dancinha da vitória. Singleton castigou aquela pequena fugger como se ela
roubasse alguma coisa.32
O KranialKidz fazia Colin se lembrar da Katherine XIX, então ele olhou fixamente para a
frente e se esforçou muito para pensar o mínimo possível. Quando Hollis falou, a voz dela
pareceu quebrar um longo período de silêncio, como os despertadores fazem.
— Acho que cês deviam trabalhar pra mim esse verão em Gutshot. Tô começando um
projeto e cês seriam perfeitos pra ele.
• • •
No decorrer dos anos, em determinadas ocasiões, algumas pessoas tentaram empregar
Colin de uma forma condizente com seus talentos. Mas, (a) os verões, ele dedicava aos
acampamentos de superdotados, a fim de poder aprofundar seus conhecimentos; (b) um
trabalho de verdade o distrairia de seu trabalho verdadeiro, que era o de se tornar um
repositório ainda maior de conhecimento, e (c) Colin não tinha, de fato, nenhuma
habilidade que servisse a qualquer fim comercial. É raro alguém deparar, por exemplo, com
o seguinte anúncio de emprego:
Prodígio
Empresa de grande porte, megalítica, procura prodígio talentoso e ambicioso para se juntar a nosso
dinâmico Departamento de Prodígios. São pré-requisitos pelo menos quatorze anos de experiência
comprovada como criança prodígio, capacidade de anagramatizar habilmente (e aliterar agilmente),
fluência em onze idiomas. As responsabilidades do cargo incluem ler; decorar enciclopédias, livros de
ficção e poesia, e memorizar os primeiros 99 dígitos de pi.33
E, assim, todo verão Colin ia para o acampamento de superdotados e, a cada ano que
passava, ia ficando cada vez mais claro que ele não tinha qualificação para fazer nada. E foi
o que disse para Hollis Wells.
— Só o que preciso é que cês sejam razoavelmente inteligentes e que não sejam de
Gutshot, e os dois preenchem os requisitos. Quinhentos dólares por semana, mais casa e
comida de graça. Tão contratados! Bem-vindos à família da Indústria Têxtil Gutshot!
Colin lançou um olhar expressivo para o amigo, que segurava delicadamente uma
codorna com ambas as mãos, os dentes atacando o osso na vã tentativa de achar um pedaço
um tanto decente de carne. Hassan devolveu a codorna ao prato devagar e retribuiu o olhar
de Colin.
Hassan fez um sutil movimento afirmativo com a cabeça; Colin franziu os lábios; Hassan
passou a mão na barba malfeita; Colin mordiscou a almofada do polegar; Hassan sorriu;
Colin fez que sim.
— Tá — disse Colin finalmente.
Eles haviam decidido ficar. Goste você ou não, Colin pensou, viagens de carro têm destino certo.
Ou pelo menos o tipo dele de viagem de carro sempre teria. E aquele parecia um destino
justo — acomodações confortáveis, apesar de infinitamente cor-de-rosa; pessoas
razoavelmente legais, uma das quais o fez sentir-se ligeiramente famoso, e o local do seu
primeiro momento eureca. Colin não precisava do dinheiro, mas sabia o quanto Hassan
odiava ter de implorar para gastar o dinheiro dos pais. Além disso, um emprego seria bemvindo.
Nenhum dos dois, Colin se deu conta, jamais havia, tecnicamente, trabalhado em
troca de salário. A única preocupação de Colin era com o Teorema.
Hassan disse:
— La ureed an uz’ij rihlatik — wa lakin min ajl khamsu ma’at doolar amreeki fil usbu’, sawfa afa’al.34
— La ureed an akhsar kulla wakti min ajl watheefa. Yajib an ashtaghil ala mas’alat al-riyadiat.35
— Daria só para garantir que o Singleton terá tempo para trabalhar nos rabiscos dele? —
perguntou Hassan.
— Isso foi algum tipo de língua inventada? — Lindsey interrompeu, incrédula.
Colin a ignorou, respondendo a Hassan:
— Não são rabiscos, e você saberia disso se…
— Fosse para a faculdade, tá. Cara, você é tão previsível... — Hassan falou. E virou-se para
Lindsey: — Não estamos falando uma língua inventada. Estamos falando a língua sagrada
do Alcorão, a língua do grande califa e de Saladino, o mais bonito e intricado de todos os
idiomas dos homens.
— Pra mim parece o barulho de um texugo com pigarro — Lindsey observou.
Colin ponderou sobre aquilo por um instante. Depois disse:
— Preciso de tempo para trabalhar nas minhas coisas.
Hollis só assentiu com a cabeça.
— Esplêndido — Lindsey disse, e parecia sincera. — Esplêndido. Mas cês não podem ficar
com meu quarto.
Com a boca cheia de arroz, Hassan disse:
— Acho que vamos conseguir achar um lugarzinho para dormir em algum canto dessa
casa.
Depois de um tempo, Hollis anunciou:
— Vamos jogar Scrabble.
Lindsey soltou um gemido.
— Eu nunca joguei isso — Colin disse.
— Um gênio que nunca jogou Scrabble? — Lindsey perguntou.
— Eu não sou gênio.
— Tá. Um sabichão?
Colin riu. Aquilo lhe caía como uma luva. Não era mais um prodígio, não tinha virado
gênio — mas ainda era um sabichão.
— Eu não jogo nada — Colin disse. — Na verdade, eu não brinco muito.
— Mas deveria. Jogar é divertido. Embora o Scrabble não seja a melhor diversão do
mundo — Lindsey disse.
Placar Final:
Hollis: 158
Colin: 521
Lindsey: 293
Hassan: 0 36
• • •
Depois de ligar para os pais e lhes contar que estava numa cidade chamada Gutshot, mas
sem mencionar que se hospedara na casa de desconhecidos, Colin ficou acordado até tarde
trabalhando no Teorema em seu novo quarto no segundo andar, no qual havia uma bela
escrivaninha de carvalho com gavetas vazias. Colin, por algum motivo que desconhecia,
sempre amara escrivaninhas com gavetas vazias. Mas o Teorema não ia bem; Colin estava
começando a temer que talvez não tivesse o conhecimento matemático necessário para a
tarefa quando levantou os olhos e viu a porta do quarto se abrir. Lindsey Lee Wells, vestida
com um pijama de lã estampado.
— Como tá a cabeça? — ela perguntou, sentando-se na cama dele.
Colin fechou o olho direito, depois o abriu e então apalpou o corte com um dos dedos.
— Dói — respondeu. — Mas muito obrigado pelo curativo.
Ela se sentou com as pernas cruzadas, sorriu e disse, cantarolando:
— É pra isso que servem os amigos. — Mas logo em seguida ficou séria, parecendo meio
envergonhada até. — Olha, eu só queria dizer uma coisa pra você. — E mordiscou a
almofada do polegar.
— EiEuFaçoIsso! — Colin disse, apontando.
— Ah, que esquisito. É tipo uma versão meio fajuta de chupar o dedo, né? Mas, de
qualquer maneira, só faço isso quando tô sozinha — Lindsey disse, e passou pela cabeça de
Colin que estar a seu lado não era estar “sozinha”, mas ele não chamou a atenção dela para
isso. — Tá, então. Sei que vai parecer um pouco retardado da minha parte, mas será que eu
posso falar uma coisa sobre aquela foto, pra cê não pensar que sou uma completa idiota?
Porque fiquei deitada na cama pensando que cê provavelmente acha que eu sou uma idiota
e que cês dois devem tá comentando o fato de eu ser uma idiota e tal...
— Ahn, tá — disse, embora, francamente, Hassan e ele tivessem muitas outras coisas de
que falar.
— Então, eu era feia. Nunca fui gorda, na verdade, e nunca usei boné, nem tive espinhas
nem nada. Mas eu era feia. Nem sei como se escolhe quem é feia e quem é bonita, talvez
tenha, tipo, uma sociedade secreta de garotos que se encontram no vestiário e decidem
quem é feia e quem é gostosa, porque, que eu me lembre, nenhuma menina no quarto ano
pode ser considerada gostosa.
— Você com certeza não conheceu a Katherine I — interrompeu Colin.
— Regra número 1 da contação de histórias: nada de interrupções. Mas, rá, rá. Tarado.
Mesmo assim, eu era feia. Implicavam comigo o tempo todo. Não vou chatear ocê com
histórias de como isso era infernal, mas só digo que era bem ruim. Eu era infeliz. Então no
oitavo ano eu adotei um estilo alternativo. A Hollis e eu, a gente foi de carro até Memphis e
renovou meu guarda-roupa, e eu acabei escolhendo um corte tipo Zelda, pintei o cabelo de
preto, parei de pegar sol e era tipo metade emo, metade gótica, metade punk e metade nerd
chic. Basicamente, eu não tinha a menor ideia do que tava fazendo, mas não importava
porque naquela escola de segundo segmento do ensino fundamental em Milan, Tennessee,
ninguém nunca tinha visto nada parecido com emo, gótico, punk ou nerd chic. Eu era
diferente, só isso. Odiava todo mundo, e todos me odiaram durante um ano inteirinho. E aí
começou o ensino médio e eu resolvi fazer com que gostassem de mim. Simplesmente
decidi que ia fazer isso. E foi fácil, garoto. Foi tão, tão fácil! Eu apenas fiquei assim. Se uma
coisa anda como um adolescente maneiro, fala como um adolescente maneiro, se veste
como um adolescente maneiro e tem a dose certa da combinação de safadoemalvadoelegal,
como qualquer adolescente maneiro, essa coisa se torna um adolescente maneiro. Mas eu
não sou babaca com os outros. Não existe nem esse negócio de popularidade na minha
escola...
— Essa — Colin disse enfaticamente — é uma frase que, até hoje, só foi dita por pessoas
populares.
— Tá, tá bem. Mas eu não sou só uma garota qualquer que era feia e vendeu a alma pra
namorar caras gatos e ir às melhores chopadas que a cidade de Gutshot tem a oferecer. —
Ela repetiu, quase na defensiva: — Eu não vendi minha alma.
— Humm, tá. Eu não me importaria se você tivesse vendido — Colin admitiu. — Os nerds
sempre dizem que não dão a mínima para a popularidade, mas… não ter amigos é uma
droga. Pessoalmente, jamais gostei de, abre aspas, adolescentes maneiros, fecha aspas.
Achava que eram todos uns merdinhas ignorantes. Mas é possível que eu seja igual a eles
em alguns aspectos. Tipo, outro dia, eu disse para o Hassan que queria ser importante, ser
lembrado. E ele disse: “O famoso é o novo popular.” Talvez ele esteja certo, e talvez eu só
queira ser famoso. Estava pensando nisso agora à noite, na verdade, que talvez eu queira
que as pessoas que não me conhecem me achem maneiro, já que quem conhece, não acha.
Eu fui ao zoológico uma vez, quando tinha 10 anos, num passeio da escola, e estava
realmente com vontade de mijar, sabe? Para falar a verdade, fiquei apertado várias vezes
naquele dia, provavelmente porque me hidratei demais. Por acaso, você sabia que aquela
história toda de oito copos de água por dia é uma bobagem sem tamanho e que não tem
nenhuma base científica? Tantas coisas são assim! Todo mundo acredita porque as pessoas
são basicamente preguiçosas e incuriosas, o que, por acaso, é uma daquelas palavras que
soam como se não existissem, mas existem.37
— É muito estranho ver sua mente funcionando — Lindsey disse, e Colin suspirou.
Ele sabia que não conseguia contar histórias, que sempre incluía detalhes extrínsecos e
tangentes que só eram interessantes para ele.
— Bem, o fim da história é que eu cheguei relativamente perto de ter meu pênis arrancado
por uma mordida de leão. E o que eu queria dizer era que merdas como essa nunca
acontecem com pessoas populares. Jamais.
Lindsey riu.
— Essa seria uma história danada de boa se você soubesse contar direito. — Ela mordiscou
o polegar novamente. Seu hábito secreto. Com a mão na frente da boca, disse: — Pois é. Eu
acho você maneiro e quero que você me ache maneira, e é a isso que se resume ser popular.
O Fim (do Começo)
Depois do primeiro beijo, Colin e Katherine I ficaram sentados em silêncio por mais ou
menos uns dois minutos. Katherine o observava atentamente e ele tentou continuar
traduzindo Ovídio. Mas se viu com um problema sem precedentes. Não conseguia se
concentrar. Ele ficava levantando os olhos para vê-la. Os grandes olhos azuis da menina, na
verdade grandes demais para o rosto tão jovem, o encaravam sem parar. Ele presumiu que
estivesse apaixonado. Por fim, ela falou.
— Colin.
— Oi, Katherine?
— Estou terminando com você.
Naquela hora, é claro, Colin não compreendeu totalmente o significado daquele
momento. Mergulhou em Ovídio, vivenciando o luto da perda em silêncio, e Katherine
continuou a observá-lo durante os trinta minutos seguintes, até que os pais dela chegaram
na sala de estar para levá-la embora. Só foram necessárias mais algumas poucas Katherines
para que ele olhasse nostalgicamente para Katherine, a Grande, como a porta-voz perfeita
do Fenômeno Katherine. O relacionamento de três minutos deles foi o acontecimento em
si, em sua forma mais legítima. Foi o tango imutável entre a Terminante e o Terminado: a
chegada, a contemplação, a conquista e a volta para casa.
23 “Meu nome é Pierre. Quando vou ao metrô, também faço a música de peidos.”
24 “O amor ama amar o amor.” Uma citação, vertida para o francês, de Ulysses, de James Joyce.
25 “Merda!”
26 “Não diga que tenho hemorroida! Eu não tenho hemorroida!”
27 Que era o que a mãe de Colin dizia quando alguém estava de provocação ou de implicância, ainda que a expressão nunca
tenha feito muito sentido para Colin.
28 “Minha mãe acha que vocês fazem bem para mim.”
29 “Por que ela acha isso?”
30 Embora, é claro, ele certamente fosse melhor que a maioria das pessoas.
31 Uma explicação mais completa da matemática por trás disso aqui seria algo muito entediante e também muito demorado.
Em livros há uma parte especificamente designada para explicações muito demoradas e muito entediantes, chamada
“Apêndice”, que é exatamente lá que você poderá encontrar uma explicação quase exaustiva da matemática a que recorremos
aqui. No tocante a esta história em si: não haverá mais matemática. Nenhuma. Prometo.
32 Tivesse roubado alguma coisa, Colin teve vontade de dizer. Mas gramática não é interessante.
33 O que Colin fez quando tinha 10 anos, ao criar uma frase de 99 palavras na qual a primeira letra de cada uma
correspondia ao dígito de pi equivalente (a=1, b=2 etc.; j=0). A frase, caso você esteja curioso: “Costumam adorar doses
alcoólicas esses inconsequentes bagres, fanfarrões embriagados, cometendo excessos hepáticos, instigando grandes
indulgências com benefícios calamitosos. Heroicamente, dedicadas focas babás fazem das crias carentes habilidosas crianças
bagres, garantindo incondicionalmente educação justa, básica, honesta, harmoniosa, dando auxílio integralmente gratuito à
família. Inspiram confiança imensa, inclusive cultivando generosidade e alegria. Já esses horríveis baiacus joviais insultam
garoupas domésticas inadequadamente, demonstrando demérito e incomodando bastante cada jovem garoupa. Humilham
as feiosas damas, justamente fazendo brincadeiras horrendas, falando baboseiras jocosas. Hostilidades irritantemente
inescrupulosas, habitualmente ferinas, bestiais, horripilantes. Jovens crianças declaram hostilizar baiacus enquanto
causadores de baderna. Aprendei a glorificar jubilosamente fantásticas garoupas!”
34 “Eu não quero arruinar sua viagem — mas por 500 dólares norte-americanos por semana vou fazer isso.”
35 “Eu não quero ocupar todo o meu tempo com trabalho. Preciso dele para fazer o Teorema.”
36 “Eu não vou jogar Scrabble contra o Singleton. Cara, se eu quiser ser lembrado do tamanho da minha burrice é só olhar a
minha nota de português no SAT.”
37 Isso é absolutamente verdadeiro, o lance dos oito copos por dia. Não há necessidade alguma de se beber oito copos de água
por dia a menos que você, por algum motivo, tenha uma preferência especial pelo gosto da água. A maioria dos especialistas
concorda que, a menos que haja algo terrivelmente errado com seu organismo, você só deve beber água quando estiver —
preste bem atenção — com sede.
 

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